Como foi a evolução do áudio, do velho estéreo aos novos sistemas 7.1.

Por Orlando Barrozo (Fevereiro de 2001)

No final do século 19, quando foram realizadas as primeiras experiências com gravação/reprodução sonora, todo mundo ouvia som em único canal. Mais do que isso: ninguém se preocupava com essa questão – quantos canais estamos ouvindo? – e mesmo assim todo mundo ficava extasiado com a novidade. Pois bem: hoje, a grande discussão entre os experts é se vale a pena o upgrade de 6 para 7 (ou 8, ou 10) canais de áudio. Com o lançamento do DVD-Audio, do Super Audio CD e dos CDs DTS, debate-se a possibilidade de, finalmente, aposentar-se o nosso velho e querido sistema estéreo. Mas será mesmo?

Evidentemente, para a maioria dos mortais essa discussão é acadêmica. O impacto da passagem de um sistema 5.1 para outro 7.1 é bem inferior, por exemplo, àquele de uma pessoa que troca seu equipamento Pro-Logic (4 canais) por um Dolby Digital. E esta mudança, por sua vez, é menos perceptível do que o choque – aí sim, pode-se usar esta palavra – de se passar do estéreo (2 canais) para o surround. O que nos leva à tentação de dizer que a grande transformação por que passou o áudio neste mais de meio século aconteceu na década de 40, quando os cientistas anunciaram que era possível trocar o som monofônico pelo dual (que então nem tinha o nome de estéreo).

Na verdade, ali o homem “descobriu” que tinha dois ouvidos e que, portanto, ouvir música em dois canais – um de cada lado de sua cabeça – era a coisa mais natural que podia acontecer. Mas, se era assim, por que foi preciso acrescentar um terceiro canal, e um quarto, um quinto e assim por diante? Que mudanças aconteceram ao longo dessas seis ou sete décadas que criaram essa “necessidade” de mais canais de áudio?

Bem, você pode não acreditar, mas já na década de 20 os laboratórios Bell – sim, a mesma empresa fundada por Alexander Graham Bell, o inventor do telefone e de mais uma centena de engenhocas – divulgaram à comunidade científica norte-americana estudos psicoacústicos segundo os quais seriam necessários de 3 a 5 canais para “recriar a realidade”. Embora com as assinaturas de eminentes pesquisadores, os tais estudos não foram levados muito a sério. Hollywood, por exemplo, para quem uma notícia como essa significaria uma revolução, simplesmente lançou o cinema falado – monofônico – em 1928 e continuou com esse mesmíssimo canal único até metade dos anos 50.

E olhem que nesse meio tempo o cinema enfrentou várias crises de bilheteria. Demorou para os grandes estúdios perceberem que um simples canal a mais faria enorme diferença para o público, enriquecendo extraordinariamente (como se comprovaria mais tarde) a experiência de ver um filme. Curioso é que também as gravadoras de discos levaram anos para aprovar a novidade, sem conseguir enxergar que a possibilidade de usar dois canais nas gravações abriria uma série de recursos aos artistas e aumentaria em muito as vendas. Foi uma verdadeira batalha tecnológica até que, em 25 de março de 1958, a RIAA (Recording Industry Association of America) autorizasse o lançamento de LPs estéreo.

“Aproximar-se ao máximo de uma apresentação ao vivo”. Desde os anos 20, sempre foi este o objetivo de todos os sistemas de gravação/reprodução sonora. Quantos canais são necessários para chegar a isso, é uma questão ainda em aberto, apesar de toda a evolução do século 20. Harvey Fletcher, então chefe dos engenheiros da Bell, disse algo significativo a respeito em 1933, após uma demonstração em 3 canais com a Sinfônica de Filadélfia: “O ouvido humano não identifica dois, três ou qualquer número determinado de canais”, disse Fletcher. “Devem existir quantos canais forem necessários para dar ao ouvido a ilusão de que esse número é infinito”.

Um dos problemas que gente como Harvey identificou na época foi bem prosaico: as pessoas, ao ouvir sons em dois ou três canais, simplesmente não acreditavam! Muitos pensavam tratar-se de algum truque, o que derrubava por terra o próprio princípio das inovações: o de recriar a realidade. Se ninguém acreditava no que ouvia, não havia realidade alguma… O desafio, portanto, era persuadir o ouvinte a acreditar que o som reproduzido eletronicamente era igual àquele que ouviria ao vivo.

Com o tempo, percebeu-se que para isso funcionar era preciso um outro componente: o ouvinte deveria “conhecer” a realidade, ou seja, ter tido alguma experiência anterior que lhe servisse de referência. Isso, aliás, é válido não apenas para áudio mas também para vídeo: como saber se a imagem do seu TV é fiel, se você nunca viu aquelas cenas ao vivo? Uma das experiências mais marcantes sobre isso aconteceu no início do século 20 com a equipe de Thomas Edison que fazia os primeiros estudos com câmeras de filmagem. Os técnicos foram a Nova Jersey e filmaram bem de frente as ondas quebrando contra o cais do porto. A certa altura, as ondas são tão altas que simplesmente cobrem a câmera. Quando o filme (apenas alguns segundos) foi exibido a uma platéia de convidados, muitas pessoas levantaram-se de suas cadeiras e correram assustadas para o fundo da sala de exibição, achando que a onda realmente viria por cima delas. Conclusão: essas pessoas não conheciam cinema e, portanto, eram incapazes de diferenciar a imagem filmada da imagem real.

Você pode estar rindo da cena acima, mas o fato é que, neste início de século 21, nossos olhos e ouvidos são muito mais “treinados” que os de nossos antepassados de 100 anos atrás. E aí é que mora o problema da indústria: convencer um ouvinte (ou espectador) de que tal som (ou imagem) “recria a realidade” é hoje bem mais difícil. Até porque os dois sentidos – visão e audição – muitas vezes precisam ser acionados em conjunto para se atingir o tal realismo. Nossos olhos determinam a posição dos objetos no espaço, enquanto nossos ouvidos determinam a ordem dos acontecimentos no tempo. Acontece que o cérebro precisa de mais e mais detalhes para criar essa sensação de realismo, o que torna as coisas ainda mais complicadas.

Um século atrás, a única referência das pessoas era – mesmo – a música ao vivo. Não havia gravações e os músicos tocavam na rua, quando não podiam tocar em teatros e bares, tentando atrair a atenção dos passantes. Foi assim, aliás, que surgiu a indústria da música, numa pequena rua de Nova York que ficou conhecida como Tin Pan Alley. Compositores que depois ficariam célebres, como George Gershwin e Irving Berlin, passaram por ali. Ao ouvi-los tocar, as pessoas paravam para comprar as partituras – e depois iam para casa tentar reproduzi-las em seus pianos. Muita gente ganhou dinheiro dessa forma, mas nem de longe se imaginava a indústria fonográfica como existe hoje.

Quanto às impressões visuais, a referência de todos era o teatro – a tal ponto que, quando surgiu o cinema falado, Samuel Goldwyn, fundador da MGM, chegou a dizer que “aquilo não tem futuro”. De certa forma, o cinema foi muito mais ágil do que o pessoal da música. Depois que surgiram os filmes estéreo, nos anos 50, Hollywood começou a investir em constantes inovações. Mas foi só graças a gênios como George Lucas e Steven Spielberg que o som dos filmes realmente evoluiu. Lucas foi quem, no final da década de 70, depois de lançar Star Wars, reuniu um grupo de técnicos para desenvolver novos sistemas de reprodução que tornassem melhor (nas suas palavras, “mais realista”) a experiência cinematográfica – surgindo daí o THX.

Spielberg… bem, Spielberg foi “apenas” o criador de Tubarão (1975), Jurassic Park (94) e O Resgate do Soldado Ryan (98), três marcos dessa evolução. Em Tubarão, sua equipe baseou-se em estudos sobre o comportamento auditivo do feto humano para criar efeitos sonoros mais realistas (de novo a palavrinha maldita…). A trilha sonora do compositor John Williams utiliza sons de baixa freqüência para simular a pulsação cardíaca do tubarão e, com isso, aumentar a adrenalina da platéia. Baixas freqüências foram usadas também para realçar os delicados passos do T-Rex em Jurassic Park, que às vezes assusta até quem já viu o filme. E, em Soldado Ryan, recria-se a sensação de audição embaixo d´água, com tiros e explosões que nos colocam no lugar daqueles soldados.

Dez entre dez críticos de cinema – e também os experts em acústica – apontaram esses filmes como exemplos de “realismo”, o que certamente não é mera coincidência. Um desses experts é Frederick Ampel, da empresa Technology Visions, que num artigo recente cita estudos sobre a audição do feto e como Spielberg soube recriar essa sensação em seus filmes. Segundo Ampel, baixas freqüências são a base das primeiras experiências auditivas do feto, na altura do quarto ou quinto mês da gravidez. Como as freqüências dos batimentos cardíacos e da voz da mãe, assim como os ruídos internos de seu estômago – tudo na faixa dos 100 aos 300Hz. São esses os sons que primeiro chegam ao cérebro do bebê e que influenciam suas reações instintivas iniciais.

Se isso tudo é verdade ou não, seria preciso pesquisar mais a fundo. Mas o fato é que Spielberg, assim como outros cineastas, conseguem “convencer” o público de que aquilo que vêem e ouvem é real. Basta comparar duas versões de um desses filmes – Soldado Ryan, por exemplo, que tem em DVD a versão DTS 5.1 e outra estéreo – para perceber como os tais 3.1 canais a mais fazem diferença. Neste caso pelo menos, parece não haver dúvida: nem todo mundo precisa de 6 canais, só as pessoas (auditivamente) normais.

 

 

CRONOLOGIA DO ÁUDIO

1881 – Primeira apresentação pública de um sistema de reprodução sonora, na Ópera de Paris.

1927 – A Bell Labs divulga estudos psicoacústicos confirmando a “necessidade” de pelo menos 3 canais de áudio.

1928 – Estréia em Los Angeles O Cantor de Jazz, com Al Jolson, primeiro filme sonoro.

1933 – Demonstração de um sistema de 3 canais com a Sinfônica de Filadélfia, usando três microfones colocados diante da orquestra.

1948 – Lançados nos EUA os primeiros LPs (long-playings), ainda com som mono.

1957 – Estréia nos EUA do sistema Cinerama, em que se utilizavam 3 canais de áudio.

1958 – Lançamento dos primeiros LPs estereofônicos.

1987 – Primeiras demonstrações do Dolby Pro-Logic, versão doméstica do Dolby Surround dos cinemas, lançado na década anterior.

1989 – Estréia de Batman – O Retorno, primeiro filme gravado em Dolby Digital (5.1 canais).

1990 – Lançado nos EUA, pela JBL, o primeiro subwoofer, caixa acústica específica para reprodução de sons graves.

1994 – Lançado comercialmente o sistema DTS (Digital Theater Systems), concorrente do Dolby Digital, também com 5.1 canais, em Jurassic Park, de Steven Spielberg (o DTS versão doméstica chegaria dois anos depois).

1998 – Surgem os primeiros CDs codificados em DTS, para reprodução de música em surround.

1999 – Apresentado nos EUA o sistema EX (7.1 canais), compatível com DD e também DTS, com o lançamento do novo episódio de Star Wars: The Phantom Menace.

 

BIBLIOGRAFIA: THE COMPLETE GUIDE TO HIGH-END AUDIO, Robert Harley (Acapella); SOUND FOR FILM AND TELEVISION, Tomlinson Holman (Focal Press); SPATIAL HEARING, Jens Blauert (MIT Press).